A inclusão das pessoas surdas nas casas espíritas

por Dorival Strelow

Eliana Haddad e Izabel Vitusso

 Levar o cristianismo redivivo para o maior número de pessoas através da divulgação do espiritismo é o que tem nos movido nesses anos todos de movimento espírita. O público e as suas particularidades são os mais diversos. E isso é o que levou a psicopedagoga, mestra em educação, Heliane Alves de Carvalho Costa, a ingressar em uma nova frente de trabalho. Intérprete de Libras – Língua Brasileira de Sinais –, ela entendeu a grande demanda nesse quesito no meio espírita. Sobre este assunto, a consultora em educação inclusiva fala sobre as diversas frentes que vêm sendo desenvolvidas nesse grande projeto de inclusão. Conhecendo-os, podemos também ajudar a romper barreiras. 

 Como você se envolveu com o tema e como foi desenvolvido o projeto acessibilidade das pessoas surdas à doutrina espírita?
Em 2007, pela primeira vez, acompanhei uma pessoa surda no Grupo da Fraternidade Espírita Irmã Scheilla, em Belo Horizonte, MG, dando início ao trabalho voluntário de tradução e interpretação de Libras nas reuniões públicas, aos domingos. Nessa época, foi necessário investir na organização dessa tarefa, considerando que se tratava de um assunto desconhecido por muitos. Então, criei dois projetos concomitantemente: “Acessibilidade das pessoas surdas à doutrina espírita” e o “Projeto de inclusão e diversidade nas casas espíritas”.
Até então, não era comum que pessoas surdas frequentassem as casas espíritas, talvez pela falta de acessibilidade, considerando que esse público se comunica por meio de uma língua diferente da língua portuguesa, a Língua Brasileira de Sinais, que foi oficializada pela Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, e regulamentada pelo Decreto nº 5626, de dezembro de 2005. Os projetos foram acolhidos pelo Grupo Espírita e, aos poucos, apareceram outras pessoas surdas e outras intérpretes voluntárias.

Por que um dicionário específico? Por quem foi elaborado?
No trabalho, percebemos que muitos sinais em Libras que são utilizados por outros espaços religiosos não se adequavam à nossa realidade, considerando as divergências conceituais e doutrinárias. Além disso, há muitos conceitos expressos pela doutrina espírita (perispírito, consolador, Espírito de Verdade, entre outros) que não apresentam sinais em Libras equivalentes.
Surgiu então o desejo de criar um grupo de pesquisa, visando qualificar e ampliar o trabalho. Organizamos um projeto de pesquisa e convidei um grupo de pessoas para participar.
No dia 3 de outubro de 2014, criamos esse grupo, denominado Estudos Surdos Espíritas (GES Espíritas), composto por pessoas surdas e por ouvintes bilíngues. Sua estrutura é formada por uma orientadora e coordenadora da pesquisa, uma equipe que compõe o colegiado, dez pesquisadores bilíngues e diversos colaboradores espíritas. Essa equipe desenvolveu estudos sistematizados sobre a doutrina espírita, criou e catalogou os sinais da Língua Brasileira de Sinais que estão identificados no Dicionário espírita em Libras (disponível em: www.dicionarioespiritalibras.com.br). Todo trabalho desenvolvido seguiu procedimentos metodológicos sistematizados.

Qual a importância da divulgação do espiritismo em Libras?
A promoção de acessibilidade da pessoa surda permite que ela tenha conhecimento e informações sobre a doutrina espírita, potencializando-lhe assim a oportunidade de desenvolver a sua evolução espiritual. Se aos olhos de Deus somos todos iguais, é importante considerarmos a individualidade de cada um. A divulgação em Libras permite essa igualdade no acesso à doutrina espírita. É importante lembrar que esse processo de inclusão não se restringe à alocação dos intérpretes de Libras nas casas espíritas. É muito mais. E é importante compreender as especificidades linguísticas, culturais, sociais, educacionais e emocionais inerentes a elas.

A demanda por essa divulgação é grande nas casas espíritas?
A oferta de acessibilidade para as pessoas surdas nas casas espíritas ainda é recente. São poucos surdos que conhecem a doutrina, poucas pessoas do movimento espírita estão envolvidas nesse processo e poucos intérpretes de Libras. Em Belo Horizonte, esse trabalho continua, todos os domingos no Grupo da Fraternidade Irmã Scheilla, e ainda desenvolvemos várias atividades com foco na inclusão. Participamos de diversos seminários, congressos, eventos espíritas, tanto em Minas Gerais quanto em outros estados. Promovemos consultorias e realizamos diversas gravações em Libras de vídeos espíritas.
Além dos trabalhos desenvolvidos pelo GES Espíritas, há outros estados que estão realizando ações inclusivas (Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Tocantins) e também desenvolvendo estudos e criações de sinais. Nos últimos quatro anos, esses estados realizaram o Encontro Nacional de Surdos e Ouvintes Espíritas. O último encontro, o 4º ENSOE, foi sediado em Belo Horizonte, com a participação de cerca de 180 pessoas, sinalizando que há um aumento significativo de pessoas interessadas no assunto.

Como as casas espíritas podem atuar nesse sentido?
Primeiramente é importante investir na formação e informação sobre o assunto. Buscar parcerias com outras casas para desenvolver trabalhos de oficinas de Libras, divulgar a importância da acessibilidade comunicacional e, caso haja o acolhimento de uma pessoa surda na casa, é importante oferecer o intérprete de Libras.

Quais resultados já foram alcançados com esse trabalho na sua casa espírita?
Já alcançamos bons resultados, depois de onze anos de promoção de acessibilidade e inclusão, no Grupo Irmã Scheilla. Realizamos traduções e interpretações das reuniões públicas aos domingos, sem interrupção e, com isso, aumentamos o público de pessoas surdas que participam. Aguçamos a curiosidade e o desejo de muitos aprenderem a Língua Brasileira de Sinais. Já realizamos oficinas de Libras para sete turmas. Atualmente é possível prestigiar a relação fraternal entre surdos e ouvintes que conversam no ambiente da casa espírita. Estamos oferecendo agora o 2o módulo do Ciclo de Estudos Espíritas em uma turma inclusiva (surdos e ouvintes), tendo a presença de intérprete de Libras. Realizamos também consultorias para outras casas espíritas, gravações de vídeos com janela de Libras (espaço delimitado no vídeo que mostra a imagem do intérprete realizando a tradução e interpretação).

Legalmente, a casa espírita, em uma palestra, deveria ter um intérprete para atender a esses interessados?

Sim. Há vários aportes legais que determinam o direito de acessibilidade comunicacional às pessoas surdas. Os mais recentes são o Decreto nº 5.626, de dezembro de 2005 que regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000 e a Lei Brasileira de Inclusão nº 13.146, de 06 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
Mas há outra lei, que é a mais importante de todas. Trata-se da única lei capaz de transformar a sociedade. É a lei do Amor! 

 

Para saber mais: www.ensoe.com.br

encontro-surdosRompendo barreiras, fazendo a diferença

 Lançado dia 8 de dezembro, na sede da União Espírita Mineira, durante o 4º Encontro Nacional de Surdos e Ouvintes Espíritas, o Dicionário espírita em Libras traz 350 verbetes de termos espíritas em português e sua tradução para Libras. O acesso é gratuito, através de site com visualizações em forma de vídeos. (www.dicionarioespiritalibras.com.br). O projeto obteve apoio da União Espírita Mineira, Aliança Municipal Espírita de Belo Horizonte e da Federação Espírita Brasileira.

“O espiritismo ainda tem muitas barreiras com a falta da Libras. Eu, assim como outras pessoas surdas, queremos absorver os conhecimentos do espiritismo, entendê-lo com clareza, perceber e realizar a reforma íntima. Aproveitar a oportunidade de trocar com outros ouvintes que aceitam compartilhar através da Libras. Isso é muito importante para a minha transformação.” Mônica Tintore – Professora surda de Curitiba.

“Em algumas igrejas católicas e evangélicas há intérpretes que apresentam uma boa acessibilidade. Aos poucos, essa acessibilidade está se iniciando na casa espírita, às vezes uma pessoa ou outra. Por isso, vivo incentivando os ouvintes a aprenderem Libras e também a traduzirem na casa espírita. A evangelização do surdo é muito importante. Porque ele fica perdido, por falta de conhecimento, por falta de amor. A maior parte deles tem dificuldade de entender e aceitar as coisas da vida.” Ronise Oliveira – Professora surda do Rio de Janeiro.

“A cada Encontro Nacional abrem-se novas possibilidades para o movimento espírita de surdos. Esse ano já está se compondo uma comissão nacional, além das comissões regionais já existentes em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Curitiba. Existem também trabalhos sendo realizados no Amazonas, Mato Grosso do Sul, Amapá, Tocantins e Pará. A cada ano esses encontros nacionais vão alertando as próprias representatividades estaduais, como as federações, para essa realidade. É o momento de tomada de consciência para as casas espíritas, que devem se abrir para trabalhar com as diferenças. Não podemos ficar na zona de conforto. Kardec nos mostrou o quanto é possível fazer a diferença na vida das pessoas.” Verônica Lima – Professora e intérprete ouvinte do Rio de Janeiro.

Assista ao vídeo com os depoimentos em Libras 

Fonte: Publicado no jornal Correio Fraterno – edição 485 janeiro/fevereiro 2019

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