Milton Medran
Essa visão tão incrustada no pensamento espírita-cristão, de que todo o sofrimento humano, individual ou coletivo, provém de nossos erros em encarnações passadas, me parece que pode ser amenizada mediante a reflexão em torno do sofrimento dos animais.
Ninguém quando vê um cachorro com três patas, um gato morrendo de fome ou um boi sendo abatido num frigorífico, há de atribuir o sofrimento que lhe está sendo impingido a uma justiça retributiva que estaria sendo imposta àquele animal por erros de outras encarnações. Poderá, é certo, verberar contra nossa incapacidade de melhor tratar nossos animais, oferecendo-lhes melhores condições de vida e reduzindo-lhes os sofrimentos que os levarão à morte. Entretanto, diante de uma comunidade de ianomâmis condenados à morte pela doença e desnutrição, ou ante uma tragédia como a da Boate Kiss, que matou mais 200 jovens em um incêndio, somos capazes de aventar a hipótese de que todos estariam pagando dívidas do passado, justificando isso com a lei de causa e efeito.
É indubitável que as misérias e as grandes tragédias humanas podem ser vistas a partir da reflexão da lei de causa e efeito. Mas esses efeitos nem sempre estão ligados a causas geradas pelas culpas individuais de suas vítimas, e o mais frequente é que eles derivem da insensibilidade, da imprudência, da ignorância ou da imperícia humanas, e que suas vítimas, como membros de uma sociedade carente de virtudes, sofram consequências capazes de oferecer a todos lições importantes ao seu aprendizado evolutivo, mesmo que não tenham concorrido com as suas causas.
Isso vem ao encontro da ideia de que não há evolução sem sofrimento. O pensador holandês Rutger Bregman, autor do best-seller “Humanidade – Uma História Otimista do Homem”, destaca, com muita propriedade, que são três os ingredientes básicos para a evolução da vida: “Muito sofrimento, muita luta e muito tempo”. A esses fatores estão submetidos todos os níveis de vida, do vegetal ao ser mais inteligente. Vale, inclusive, para o planeta Terra, que, como um ser vivo, experimenta fenômenos como este que vitima, neste momento, nossos irmãos turcos e sírios com o terremoto ontem acontecido.
A vida é uma grande aventura, carregada de perigos geradores de sofrimentos cujas consequências se tornarão ganhos evolutivos. Essa visão mais ampla da vida, como processo, pode dispensar a presença da culpa (sentimento tão do gosto do cristianismo), como móvel de todo o sofrimento humano, até mesmo porque os seres fora do gênero humano também sofrem sem que culpas lhes possam ser atribuídas.
Na minha modesta, e não necessariamente definitiva, reflexão sobre esse tema, não desprezo totalmente que ocorram reencarnações marcadas por doses consideráveis de uma justiça retributiva, em que o agente de erros do passado esteja, nesta vida, sofrendo consequências daqueles mesmos erros. Mas não precisamos recorrer ao processo reencarnatório para que esse fenômeno ocorra. Numa mesma existência é possível, a todo o momento, nos depararmos com sofrimentos que cada um produz a si próprio, em face de suas ações mal planejadas, suas imprudências ou sua ignorância.
O sofrimento, na visão espírita, resulta da inobservância da lei natural, gravada na consciência do indivíduo, mas cuja inteira compreensão nem todos têm. O sofrimento é, pois, pedagógico, existe na natureza não para punir, e sim para educar e fazer crescer (evolução). O exagerado sentimento de culpa que muitas religiões, e notadamente o cristianismo, incutiram no espírito humano, pode até produzir sofrimentos desnecessários a quem atribui exclusivamente à culpa o fenômeno natural do sofrimento.
Imagino que determinados espíritos, atormentados pela dor e pelo arrependimento de haverem causado a outrem alguma dor, possam ser dominados pela ideia de que somente passando por idênticos sofrimentos se libertarão da culpa, e que essa ideia fixa e distorcida do processo evolutivo, termine por lhes impor sofrimentos reencarnatórios evitáveis se, ao contrário, buscassem refazer suas vidas dentro de padrões capazes de resgatar, pela ação efetiva (arrependimento e reparação) os erros anteriores.
Não fosse assim, e se tomássemos a lei de causa e efeito como uma contínua retribuição de um mal com outro mal, criaríamos um interminável círculo vicioso crime/castigo. Não haveria, então, evolução e adotaríamos uma visão coincidente com a do castigo eterno judaico-cristão.
Reconheço que esse tema é áspero e está impregnado da cultura da culpa, base fundamental da teologia judaico-cristã, mas a lei da evolução, à qual se filia filosoficamente o espiritismo, nos convida a nos libertar dessa gaiola e buscar dimensões mais amplas da vida, capazes de conduzir todo o ser inteligente ao estado de felicidade, que é, justamente, aquele a que nos leva a observância da lei natural.
(Manifestação do autor, postada em grupo de discussão no whats da CEPABrasil, no último dia 7 de fevereiro de 2023, logo após o terremoto da Turquia e Síria)