Professor, pesquisador e escritor, Severino Celestino da Silva é estudioso de línguas antigas e profundo conhecedor da Bíblia. Doutor em odontologia pela Fundação de Ensino Superior de Pernambuco, é professor-titular no curso de odontologia da Universidade Federal da Paraíba e espírita há mais de 40 anos. Tem pós-doutorado em ciências das religiões pela Pontifícia Universidade Católica de Goiânia-GO, e é fundador e professor do curso de ciências das religiões da Universidade Federal da Paraíba, onde lecionou judaísmo e cristianismo primitivo por 15 anos. Durante este período, Severino se debruçou intensamente sobre as obras de Kardec, relacionando o espiritismo com a Bíblia, em hebraico, sua língua original. Sobre o tema, o professor possui diversas obras publicadas, dentre elas: Analisando as traduções bíblicas, O sermão do monte e Analisando as traduções bíblicas. Leia a esclarecedora entrevista que Severino concedeu ao Correio Fraterno.
Por que a mensagem de Jesus tem tantas versões?
Em princípio, a mensagem de Jesus é universal. Ela veio para todos, religiosos e não religiosos. O objetivo foi sempre nos assistir, através do seu amor. No entanto, os homens sempre tiveram dificuldade de entendê-la por vários motivos. Inicialmente, pelo fato de que Jesus falava hebraico e aramaico e sua mensagem foi escrita pelos discípulos em grego. Nem todos entendem estes idiomas e ficam na dependência de tradutores, às vezes não confiáveis e fiéis ao que está escrito nos textos originais. Também, as religiões cristãs traduziram e têm traduzido a mensagem de Jesus com intenções de atender, às vezes, a sua visão religiosa.
Que importância tem o estudo da Bíblia para o espiritismo?
Tem grande importância. A doutrina espírita tem bases e um grande suporte nos textos bíblicos. Não existe espiritismo sem Evangelho. A Bíblia, em seus textos originais, representa um repositório de fenômenos e registros de histórias mediúnicas de todos os tipos. Em O livro dos médiuns, vamos encontrar explicações científicas para estes fenômenos produzidos pelos profetas que, na verdade, foram grandes médiuns. A Bíblia também apresenta ensinamentos que foram adotados na codificação da doutrina espírita, como a reencarnação (as vidas sucessivas) que se encontra em muitas passagens do Velho Testamento e Evangelhos.
A que o senhor atribui as guerras religiosas?
A guerra, de qualquer natureza, está sempre relacionada com interesses pessoais e materiais, além do egoísmo e do orgulho que estão sempre presentes nestes casos. As religiosas são ainda muito mais surpreendentes, porque não se consegue entender como alguém ligado à espiritualidade e ao amor pode promover uma guerra. A guerra religiosa é um contrassenso, e maior ainda, quando religiosos de qualquer corrente procuram justificá-la como se fosse uma vontade do ser superior espiritual a quem eles seguem. Como entender que Alá, Buda, Krishna e Jesus possam concordar com as guerras que seus seguidores têm feito em nome de Deus?
Como melhor compreender os Evangelhos? Como estudá-los?
Os Evangelhos são as melhores mensagens sobre os ensinamentos de Jesus. Eles contêm o seu ensino moral, seus atos, parábolas e predições. Podem ser estudados partindo-se do conhecimento de que Jesus era um judeu, que teve sua história escrita por judeus e para os judeus. E devem ser estudados seguindo-se a ordem dos ministérios de Jesus, sem esquecer a importância de conhecermos o idioma em que foram escritos. Também seguir sua sequência, separando-se os itens: o ensino moral de Jesus, depois os seus atos, suas parábolas e, por último, suas predições.
O apego à letra não prejudica a compreensão da essência da mensagem?
Claro! Prejudica não só a mensagem de Jesus como também toda a mensagem bíblica. Os estudiosos orientais afirmam que quem utiliza o sentido interpretativo literal da Bíblia se perde no entendimento de sua compreensão. Por isso, devemos buscar estudar a Bíblia didaticamente, separando a mensagem da Primeira Revelação e Segunda ou Novo Testamento, até chegar a mensagem de Jesus, analisando e procurando conhecer todos os fatores que envolveram a sua origem. A Bíblia é uma biblioteca com 73 livros com autores diferentes e escritos em épocas diferentes. Por isso, necessitamos conhecer a origem de cada livro, sua história e suas mensagens. Separar cada livro pelo nome e, antes de explorá-lo, ter respostas para as questões: Quando ele foi escrito? Por quem foi escrito? Para quem foi escrito? Qual o objetivo do livro?
O nosso canal com Deus é feito pela mente e pelo coração. Por isso, aconselhamos o estudo do livro A gênese, de Alan Kardec. E, depois de cada leitura, criar o hábito de reflexão, procurando sintonia espiritual e um coração voltado para o Cristo. Ele irá nos assistir sempre.
Como o senhor vê as interpretações dos castigos nos textos sagrados?
Deus é infinitamente misericordioso, justo e bom. Ele não premia nem castiga. Nós somos submetidos à lei de “causa e efeito” que a tudo rege. Jesus nos fala em Mateus 16:27 “que o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos; e então dará, a cada um, segundo as suas obras”.
Existem inúmeras passagens bíblicas que se referem à colheita daquilo que plantamos, desde o Levítico 5:17: “E, se alguma pessoa pecar e fizer contra algum de todos os mandamentos do Senhor o que se não deve fazer, ainda que o não soubesse, contudo, será ela culpada e levará a sua iniquidade”. No Deuteronômio 8:5, que fala: “Confessa, pois, no teu coração que, como um homem castiga a seu filho, assim te castiga o Senhor, teu Deus”. Passando pelo livro de Jó 5:17: “Eis que bem-aventurado é o homem a quem Deus castiga; não desprezes, pois, o castigo do Todo-Poderoso”. Estes princípios de causa e efeito se encontram em muitas passagens da Bíblia. Considerar e entender estas passagens dos textos bíblicos como castigos de Deus são interpretações dos que não entenderam ainda, a lei de causa e efeito, de que todos nós colhemos o que plantamos.
Podemos dizer que as verdades trazidas, por exemplo, no Velho Testamento já estariam superadas com o advento do espiritismo?
Nunca. As verdades trazidas pela Primeira Aliança ou Velho Testamento ainda estão perfeitamente vigentes, aplicáveis à realidade de hoje. Acrescente-se que os Dez Mandamentos são ensinos morais e não religiosos, são ensinos universais. Se a humanidade houvesse praticado e ainda praticasse os ensinamentos de Moisés, contidos nos Dez Mandamentos, provavelmente não teria havido necessidade da vinda de Jesus entre nós, pois já estaríamos redimidos.
Lamentamos quando ouvimos alguns irmãos da doutrina espírita afirmarem que da Bíblia só devemos considerar o Novo Testamento. Esta afirmativa nega o que afirmam Jesus, Kardec e o Espírito da Verdade. Jesus jurou fidelidade à Torá e aos profetas (Mateus 5:17-19), afirmando que não passará nada da Torá sem que tudo seja cumprido, e ainda lamenta os que alteram o seu significado. Allan Kardec fala nos comentários da questão 59 de O livro dos espíritos que a Bíblia não contém erros, nós que nos equivocamos ao interpretá-la. No primeiro capítulo de O evangelho segundo o espiritismo, “Eu não vim destruir a Lei”, enumera todo o conteúdo dos Dez Mandamentos e acrescenta que eles representam a lei de todos os tempos e de todos os países e que têm por isso mesmo um caráter divino. Também dedica ainda o capítulo 14 ao tema “Honrai vosso pai e vossa mãe”, que é uma recomendação que se encontra no Êxodo 20:12. E, no capítulo 6, item 12, ainda recorre ao ensino do profeta Isaías e do Livro de Jó. O Espírito da Verdade, na questão 275 de O livro dos espíritos, nos aconselha a ler os Salmos e, na questão 560, se refere ao Eclesiastes. São livros do Velho Testamento.
Como o senhor concilia em seus estudos: a mística dos textos bíblicos e a razão enaltecida na obra de Kardec?
O Espírito da Verdade nos traz uma informação que auxilia a entender tudo isso. Na questão 627 de O livro dos espíritos, Kardec solicita ao Espírito da Verdade esclarecimentos sobre a necessidade da Revelação Espírita, uma vez que já existia as revelações de Moisés e de Jesus. O Espírito da Verdade esclarece que as revelações anteriores possuíam sentido figurado e parabólico, enquanto a doutrina espírita vinha levantar o véu e tornar compreensível o que até então possuía caráter obscuro e figurado.
Acho perfeitamente conciliáveis os textos bíblicos e a razão que envolve a revelação espírita. As três revelações enviadas por Deus representam etapas distintas da mensagem do Cristo. Cada uma delas tem seu conteúdo específico e compatível com a evolução dos povos da época para quem elas vieram. Elas se completam e não apresentam antagonismos entre si como pensam alguns estudiosos.
Esta conciliação está perfeitamente evidenciada na mensagem do espírito Israelita encerrando o item 9 do primeiro capítulo de O evangelho segundo o espiritismo, quando afirma: “Foi Moisés quem abriu o caminho; Jesus continuou a obra, e o espiritismo a arrematará”.
O que nós, espíritas, podemos fazer para que essa fonte não se esgote e continue na sua pureza inicial?
Devemos procurar reviver os ensinamentos do Evangelho de Jesus em sua cristalinidade e pureza inicial, como eram vividos pelos apóstolos e seguidores cristãos dos primeiros três séculos. Temos uma responsabilidade muito grande de fazer reviver, com gestos e atitudes, o verdadeiro significado do grande legado que existe nos Evangelhos de Jesus.
Analisando racionalmente seus postulados, podemos afirmar que a doutrina espírita nos torna próximos da realidade espiritual dos Evangelhos do Cristo, como a caridade, a fraternidade, as curas, o perdão e demais princípios e ensinamentos do Cristo. Em nossos ombros, repousa a responsabilidade de praticá-los.
O que o senhor gostaria de ver no movimento espírita com relação a esse aspecto?
A reflexão é sempre muito necessária, diante da história que conhecemos, sobre as traduções da Bíblia, para não nos deixarmos levar por princípios e ensinamentos bíblicos sem base e sem racionalidade. Não acreditem em tudo que lhes disserem. Existem muitos falsos líderes que se colocam na condição de donos da verdade e arrastam muitos. Jesus nos adverte no capítulo 24 do Evangelho de Mateus quando afirma: “Atenção para que ninguém vos engane. Pois muitos virão em meu nome, dizendo: ‘O Cristo sou eu’, e enganarão a muitos”. Isso está em Mateus 24:4 e 5. Façamos como nos aconselha Paulo aos Tessalonicenses 5:21: “Discerni tudo e ficai com o que é bom”.
E pra finalizar: em que esse discernimento pode nos auxiliar na evolução espiritual?
O discernimento passa por uma série de fatores que necessitam de algumas análises e reflexões.
Não importa a religião. Todas elas possuem um código moral que orienta os seus seguidores para a transformação e para serem melhores. A prática do bem está acima da questão religiosa, é algo que está no interior do campo espiritual de cada ser humano. Todo ser humano tem dentro de si a semente do bem. A religião pode ser um grande auxiliar, mas não é o único. Os não religiosos também praticam o bem, a caridade e o amor. O religioso limita e o espiritual liberta. Assim, o amar, o servir e o perdoar fazem mais parte do ser humano do que da religião. Independentemente de qual seja a sua religião, busque sempre a sua transformação moral.
Eliana Haddad
Fonte: Correio.News