Marcelo Henrique
Leonardo não era um palestrante espírita comum. Estudioso, com sólida formação na Doutrina dos Espíritos, tinha tido a felicidade de ser instruído nos livros genuínos de Kardec. Na pré-mocidade, nas casas em que frequentava, também havia a divulgação de obras tidas como espíritas, tanto romances como livros de teoria ou filosofia. Interessado que era, perguntava, pesquisava, conversava bastante com os mais velhos e com os coordenadores e instrutores dos cursos oferecidos nas casas espíritas. Vez por outra, também esperava a saída de um ou outro palestrante, que ele considerava estudioso e conhecedor, para fazer-lhe algumas perguntas.
O tempo foi passando, e ele foi assumindo encargos e tarefas. Coordenou grupos, inicialmente de jovens, depois de adultos e chegou aos cargos de destaque no Centro e no movimento federativo no Estado em que residia. Passou a integrar instituições de cunho nacional, dividindo outras responsabilidades maiores.
As viagens o fizeram conhecer outros “modos de entender” o Espiritismo. O intercâmbio de ideias com diversos companheiros foi a argamassa que sedimentou mais e mais conhecimento e prática. Também foi oportunidade para conhecer algumas iniciativas um pouco estranhas, dentro de instituições e grupos espíritas. Aquelas atividades que pertencem a outras filosofias e ramos do conhecimento humano, respeitáveis e próprias para os ambientes aos quais se destinam. Algumas, até, permitem ao ser o descortino de novos horizontes, a busca pela essência, o conhecimento de si mesmo e a melhoria das relações interpessoais. Não há nenhuma dúvida disso.
No movimento espírita da cidade, região e do Estado, era bastante requisitado. Participava das escalas doutrinárias de várias instituições e, mensalmente, chegava a realizar quinze ou dez palestras. Os telefonemas eram comuns e os convites também se davam nas próprias reuniões doutrinárias quando, após palestrar, era abordado por um ou outro dirigente de outra instituição, que desejava, também, contar com a fala do companheiro em sua seara.
De fato, sua verve eloqüente, sua dicção perfeita, sua “embocadura” eram um diferencial. E não somente isso. A profissão e as atividades laborais também o tinham talhado e aperfeiçoado, e sua postura, na tribuna, era compenetrada, ereta, concentrada e digna de apreço. E quanto ao conteúdo? Genuinamente espírita! Calcado nas diversas obras publicadas por Kardec, com alusão aos princípios espiritistas e a ilação entre pontos que mereciam análise conjunta, a par de estarem postos em livros distintos. Enriquecia suas análises com a realidade, com exemplos, situações da vida e ocorrências na casa espírita, permitindo aos presentes a verificação da aplicabilidade dos conceitos aos fatos cotidianos.
Com o tempo, foi-se tornando (ainda mais) crítico. Como era um leitor voraz, interessado por tudo o que se divulgava acerca do Espiritismo, buscava novas literaturas, lançamentos e as revistas e jornais espíritas, alguns gratuitos, outros vendidos em bancas, permitindo verificar as várias nuances do movimento. Quem o conhecia e convivia com ele, sabia do seu desapontamento ante certas análises ditas espíritas, mas que afrontavam a razão e o bom senso – marcas de Allan Kardec. A superficialidade de algumas publicações, na forma de artigos ou, mesmo, livros, o deixava entristecido e aborrecido. Não era possível que alguém que tivesse por obrigação o respeito e a fidelidade à teoria espírita estivesse escrevendo daquela forma.
Com o tempo, foi ficando bastante incomodado com a excessiva tendência religiosa (ou religiosista) nas instituições que, a despeito de verbalizarem que o Espiritismo não adotava cultos, rituais, ritos, objetos, vestes, hierarquias, sacramentos, entre outros, permitiam ou endossavam a existência destes, ainda que relativamente disfarçados, nas ambiências espiritistas. A religião espírita, como forma de orientação e de identidade, assim, estava cada vez mais lhe incomodando. Rompeu, então, com as entidades tradicionais, declarando-se um espírita não-religioso. E foi se sentindo melhor. Conheceu, até, uma instituição que defendia e se autodenominava laica, o laicismo espírita, que jamais imaginava existir. Percebeu inúmeras semelhanças e passou a se sentir mais à vontade em eventos, reuniões e congressos.
Voltando ao plano local, percebeu, aos poucos, que os convites para palestrar iam se tornando mais escassos. Aquela instituição, no Norte ou no Sul do Estado, que sempre lhe convidava e que insistia, até, para que as idas e as palestras fossem mais freqüentes, simplesmente desapareceram. Caiu no esquecimento. E, quando, vez por outra, aqui ou ali, encontrava um ou outro membro daquela Casa e se cumprimentavam, em rápidas conversas, em eventos espíritas estaduais ou na rua, fortuitamente, o engraçado é que o dirigente da vez até mencionava que “fazia tempo que ele não falava” lá no Centro e que “iria marcar uma palestra”. Mas nada ocorria. E o tempo passava, e aquilo lhe incomodava.
Certa feita, encontrando um daqueles dirigentes, ele, franco como de costume, perguntou o porquê de não ter mais sido chamado para palestrar, já que tinha uma empatia e gostava muito da “energia” daquela instituição, além de sentir saudade dos dirigentes e freqüentadores, alguns amigos de longeva data. O dirigente, constrangido, até ruborizado, mencionou ter havido alguns comentários, algumas críticas sobre a última palestra. E que um dos freqüentadores, mais idoso, tinha dito que não admitia que numa “casa espírita”, calcada no sentimento de fraternidade, alguém criticasse, na tribuna, uma obra ditada por dado espírito, que teria sido psicografada pelo “santo” Chico Xavier, o homem-caridade, o homem-amor. Era um acinte. Uma afronta. Era um “desserviço” à doutrina, portanto. E que nunca mais convidassem dito palestrante – ele – porque o freqüentador, então, iria deixar de aparecer naquela casa.
O tom ameaçador e a distorção das palavras que ele, como expositor, havia utilizado na ocasião, o deixaram desconcertado. E triste. Seus olhos marejaram. Não pelo fato em si, mas pela absoluta impossibilidade do exercício do livre pensamento, baliza-mor da própria Filosofia Espírita. O livre exame – de tudo e de todos – não podia estar conciliado com a crítica, áspera e ácida, desmedida até, feita sobre uma fala, um recorte da exposição daquela noite. E foi para casa, pensativo e emburrado. A esposa, sempre ela, foi-lhe o ombro amigo e a confidente de costume. Conversaram e ele pôde, então, dormir em paz.
Nunca mais lhe chamaram, realmente, para falar naquela tribuna. E isto já faz alguns anos. Pelas redes sociais, Leonardo e o dirigente conversam, trocam ideias, ele recomenda leituras,
faz comentários sobre teses e entendimentos “do momento”, ao que o dirigente agradece e até repassa. Conversam animadamente e riem de situações que permitem alegria.
Leonardo não consegue entender e justificar esse engessamento do “movimento”. Essas atitudes de censura e de controle, como se houvesse um poder central – clerical, religioso, apostólico, inquisitorial – que define o que “pode” e o que “não pode” ser dito, tratado, enfocado. Os censores se multiplicam. Eles estão por toda a parte, perto de você, de mim, de qualquer companheiro espírita. Se portadores de algum poder material, humano, temporal, as pessoas se revestem de autoridade e ditam suas regras, o ritmo, permitem ou condenam. Não duvido existirem “listas negras” de palestrantes ou pensadores. Há um desejo incomensurável de aprovar ou reprovar condutas. Ou pessoas. Parece saciar desejos e vontades a atuação de censura ou de indicação – ou de veto – a determinados companheiros que partilham das mesmas ideias e informações. Estranho. Não há uma “única forma” de ver (e entender) o Espiritismo. Este permite o exercício do livre pensamento, porque livre é o ser espiritual e porque ninguém “enxerga” as coisas de idêntica maneira. Depende do seu momento existencial, de sua bagagem, de suas leituras, de suas experiências.
Querer circunscrever a interpretação espírita a um único procedimento padrão, a uma única regra de análise, a um prisma unitário, é atentar contra a própria natureza e a progressividade da Doutrina dos Espíritos, já que nós, individualmente, também estamos em constante e eterno progresso.
Dirigentes de hoje não possuem, é verdade, as mesmas vestes, togas, batinas, nem adereços, chapéus e outros objetos de reconhecimento de poder e autoridade. Mas, de modo recorrente, também no seio das atividades espíritas, recordam-se de suas experiências anteriores, ainda que inconscientemente, e praticam atitudes similares nos dias atuais, como se os motivos determinantes, os cenários e os personagens fossem os mesmos. E muitos que, em outras eras, encontravam-se sujeitos ao jugo da autoridade infalível, acostumados, repetem os mesmos atos genuflexórios na atualidade.
Que bom que há Leonardos. Muitos. Os que pensam e repensam o Espiritismo, para desengessá-lo, torná-lo mais leve, para que alcance, de fato, consciências livres e corações receptivos. Onde não seja necessário obedecer, temer, ter culpa. Onde se conquiste pela razão, pela liberdade de agir, pela análise ponderada dos diversificados cenários da existência humana, com o auxílio dos pressupostos espíritas, que tanto esclarecem, motivam, emocionam e dão o sentimento de sabedoria, entendimento, satisfação íntima e vontade de ser cada vez melhor. Precisamos de mais Leonardos. Na nossa “casinha” espírita, na nossa cidade, no nosso Estado e nos organismos que “representam” o ideal espírita em nosso país. Você não precisa ser um Leonardo. Você só precisa ajudar cada Leonardo a fazer a diferença e mudar, para melhor, o nosso movimento espírita.
Vamos, então, ajudar o Leonardo?
1 comentário
Que lindo exemplo de procura da verdade.
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